segunda-feira, novembro 19, 2007

Sobre cotas, cor da pele e genes

Como engenheiro químico de formação eu não posso dizer que sou um especialista em genética. Mas por ter estudado genes e genomas agora já por alguns anos não preciso me declarar um completo ignorante no assunto. Desde muito antes da questão das cotas para minorias ou políticas de ação afirmativa chegar à nossa universidade, eu tenho me deparado com alguns conceitos que ainda me são nebulosos. Esse de raça, por exemplo.

Se perguntarmos para qualquer um na rua se Pelé é branco ou preto, ninguém titubeará em responder prontamente. Mas, e sobre aquelas mulatas do Sargentelli, vocês lembram, o que dizer? Algumas são pelo menos cerca de metade branca, metade preta, isto é, mulatas mesmo, não se tem como negar. Lindas e maravilhosas, diga-se de passagem.

A cor da pele, ou mais propriamente a produção de proteínas e outras substâncias específicas que levam à formação de melaninas, assim como várias outras características humanas, é um traço fenotípico, isto é, é o resultado da expressão gênica de um indivíduo, herdadas parcialmente de seus pais, e transmitidas parcialmente para seus descendentes. Parcialmente porque o meio ambiente, ou as condições de contorno como gostamos de dizer em engenharia, exercem contínua pressão sobre o desenvolvimento do indivíduo desde que os gametas se fundem, interferindo na expressão gênica e, conseqüentemente, nos fenótipos. Em linguagem um pouco mais técnica, o fenótipo é o resultado da transcrição de certos genes, codificados em trechos de um famoso ânion, o do ácido desoxirribonucléico (DNA), em ácidos ribonucléicos mensageiros (mRNA), e de sua tradução em proteínas, que são polímeros formados por duas dezenas de aminoácidos tomados como monômeros (como, por exemplo, o aminoácido tirosina) em uma longa cadeia macromolecular. Outras proteínas e moléculas menores, íons, e a própria água auxiliam na regulação da expressão, permitindo assim variações individuais ainda maiores.

As melaninas são polímeros insolúveis derivados da tirosina, responsáveis pelo escurecimento de peles, pelos, e penas. De forma semelhante, os carotenos contribuem para pigmentação amarela e avermelhada. Nada que a boa ciência não possa ir desvendando em seus mais profundos detalhes. Não há segredos, não há mágica, é pura bioquímica. Os conhecidos zebrafishes ou peixes-zebra (Danio rerio) devem seu nome à expressão orquestrada de seus "genes de melanina". Assim, aparentemente os peixinhos pigmentados, como acontece também com ratos, camundongos e coelhos, preferem ambientes mais escuros, e são menos sensíveis à luz do que seus correspondentes hipopigmentados. Os fenótipos que em alguns ambientes oferecem vantagens, podem ser mortais em outros.

Voltando às mulatas do Sargentelli, a questão que se coloca é: como é possível definir se uma pessoa é, digamos, branca, negra, ou parda, de uma forma que seja absoluta e que sirva de parâmetro para ingresso em uma universidade? Aqui tenho que abrir um parênteses para admitir que não reconheço termos politicamente corretos ou incorretos para cor da pele. Quando eu era menino a gente chamava os negros de negros e não tinha nada de errado nisso. Depois alguns começaram a dizer que chamar alguém de preto era uma forma depreciativa (Ou seria o contrário, começamos a chamar os pretos de negros?). Agora dizem que o "correto" é chamá-los de afrodescententes, coisa que eu sei todos nós somos, admitindo que somos todos descendentes de ancestrais africanos, independentemente de nossa cor da pele ou das pontes de dissulfeto em nossos fios de cabelo (um outro traço fenotípico).

A melhor resposta que tenho até agora é: não é possível. Isto é, do ponto de vista molecular, pelo menos, não é possível definir uma raça propriamente, sem certo grau de arbitrariedade. Pelo menos não objetivamente e sem introduzir um parâmetro cabalístico qualquer. Ou seja, os fenótipos humanos (lembre-se, expressão dos seus genes sob a influência de seu meio ambiente) exibem um espectro contínuo de variações, precisando de indicadores técnicos bem definidos –e arbitrários– (marcadores moleculares, por exemplo) para serem classificados em grupos do tipo "raça A" ou "raça B". A bem da verdade é preciso admitir que grupos que se isolaram de alguma forma reúnem características fenotípicas mais freqüentes, mas ainda assim a variação entre grupos pode ser considerável. Surpreendentemente, é justamente na África onde se encontram as maiores variações genômicas e, conseqüentemente, fenotípicas. Não por acaso: os grupos africanos sofreram de muito maior isolamento ao longo do tempo do que os grupos migratórios deles derivados. Nos grupos africanos, um aminoácido chamado alanina está presente como um "resíduo" da proteína em 98% dos casos, enquanto que em populações européias 99% tem uma substituição por treonina, outro aminoácido na cadeia do polímero. Ou seja, a substituição acidental de um único aminoácido (alanina por treonina, neste caso) na proteína, é responsável por boa parte das diferenças de pigmentação da pele entre esses dois grupos, africanos e europeus, e um único gene entre os cerca de 25 mil que temos tem sido causa de incontável sofrimento, injustiça, discriminação e discussão ao longo da História.

Voltando agora ao Sargentelli, propriamente dito. Se sairmos perguntando se ele era um sujeito forte e alto ou fraquinho e baixo, acho que a maioria que o conheceu acertaria por mais de 99%. Agora, o que dizer do Sílvio Santos? Ele é forte, fraco, alto, baixo? Hum, acho que aqui fica um pouco mais complicado. Pois bem, a estatura, ou o teor de músculos e/ou de gordura, assim como a cor da pele podem também ser considerados traços fenotípicos. Suecas e suecos são em geral mais altos e claros do que brasileiras e brasileiros, por exemplo. Acho que você já entendeu onde quero chegar. You've got the picture!

No doutorado eu tinha um colega post-doc no laboratório que era da tal cor. Ele não cansava de repetir que estava cansado de ter que provar que estava na Northwestern University por mérito e não pela cor de sua pele. Segundo ele, toda entrevista para um emprego era uma tortura pessoal que ele tinha que enfrentar. E ele era "afrodescendente", como querem os americanos "politicamente corretos". Eu mesmo fui Teaching Assistant de uma turma que tinha duas meninas negras. Preciso confessar que elas só foram aprovadas com a ajuda do professor. Estavam claramente defasadas e não tinham a menor condição de acompanhar o restante da turma. Meu amigo negro estava coberto de razões por estar chateado, mas o mercado tinha razões de sobra também para suspeitar dele. Tenho repetido esta história para meus colegas que defendem o sistema de cotas, mas acho que eles usam outros parâmetros em suas análises e desprezam completamente meus argumentos.

Se eu fosse negro, não iria querer entrar pela porta dos fundos. Até porque eu sei que é possível para qualquer um que tenha competência entrar pela porta da frente. Não é tratando os negros como coitadinhos que eles vão superar a desigualdade social que lhes foi imposta ao longo dos anos. E não é instituindo o racismo oficialmente que vamos resolver nossos problemas. É, sim, com muito trabalho, suor e sacrifício pessoal. Ainda podemos salvar a nossa chamada democracia racial. Não se trata de fazer justiça. Trata-se de se construir uma universidade forte e respeitada, com gente de todas as cores e matizes, mas que entrem pelos seus méritos, não pelos seus poucos genes variantes. É só assim que vamos poder eliminar a pobreza e fazer justiça, com os mais fortes superando os mais fracos. Isso vale entre os peixes-zebra e vale entre nós. Essa é uma lei implacável da Natureza. E quem disse que ela é justa?

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Figura: Molécula de melanina. http://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/, 19 Nov. 2007.

Fontes consultadas:

Melanin biosynthesis. http://www.chem.qmul.ac.uk/iubmb/enzyme/reaction/AminoAcid/melanin.html, 19 Nov. 2007

Modern Tribalist. http://moderntribalist.blogspot.com/2006/11/race-genes-and-skin-color.htm, 19 Nov. 2007

Hedges et al. (2007) The FASEB Journal. 21:963.1. Zebrafish melanin pigmentation influences dark-seeking behavior.

domingo, novembro 18, 2007

Rumo ao Ano de 2008

Baixada a poeira da eleição para reitor na UFSC, é hora de preparar o terreno para a reforma que precisa ser feita, dos dois lados do rio, se é que se quer ainda sonhar com uma instituição forte e respeitada.

A UFSC tem, talvez pela primeira vez na sua história, a real oportunidade de se transformar em uma instituição global, atraindo projetos e cérebros que podem dar grande contribuição ao desenvolvimento da região e do país, e colocá-la no plano internacional na abordagem de importantes problemas globais: energia, meio ambiente, pobreza e segurança/violência. Vai precisar de todos para isso, da esquerda à direita.

É importante que se tenha consciência de que essas questões estão acima do interesse e da capacidade de qualquer indivíduo ou grupo, e requerem esforço coletivo para que se criem as condições de competitividade necessárias para a inserção da universidade no contexto internacional. É fácil observar que quaisquer desses temas requer abordagens multidisciplinares, que necessitam de suporte das mais diversas áreas básicas e aplicadas, da engenharia, arquitetura, computação, ciências sociais, biológicas, médicas, de economia, administração, direito, línguas estrangeiras, e poderíamos continuar elencando áreas e campos de conhecimento, e certamente abarcaríamos toda a universidade.

É evidente que a universidade tem que ser meritocrática, e não necessariamente democrática, o que não reduz o espaço a ser ocupado -e muito necessário-, pela ação política que coordena os interesses da sociedade e de grupos menores, internos e externos. No entanto, a escolha dos administradores e assessorias precisa ser consoante com um projeto de universidade moderna, e não o pagamento de favores eleitoreiros. Aliás, seria uma bela lição para aqueles que apoiaram a candidatura vencedora só pensando nas vantagens pessoais, apadrinhamentos e compensações pós-eleitorais. Quero crer que o candidato eleito e seu vice têm a estatura moral e profissional para tirar a universidade deste atoleiro em que se meteu. Isso só o tempo dirá, mas eles nada farão sem a conscientização de que este tem que ser um projeto institucional, sem donos privilegiados.

Isso significa fundamentalmente ter que se despartidarizar a universidade, acolhendo idéias e projetos que venham de qualquer setor ou ideologia, desde que fundamentados num objetivo maior, que tem que ser o de colocar a UFSC no primeiro plano, como a melhor universidade federal do país, nos próximos anos.

Algumas das questões que precisam ser imediatamente revistas e/ou endereçadas incluem:

  • Implantação de um modelo de gestão, capacitação de servidores e revisão de cargos e funções, com um mínimo de gestão de processos, moderno e eficiente. O setor de serviços e de tecnologia da informação precisa ser reestruturado e fortalecido. Muitos serviços precisam de fato ser criados. Não há quem agüente lidar com tanto papel e burocracia. Isso é um desperdício de tempo e de recursos.
  • Criação de meios para aporte financeiro dos setores públicos e, sobretudo, privado. Isso certamente passa por um modelo de gestão de projetos que vai além do que temos/tínhamos nas atuais fundações.
  • Articulação com os sindicatos, que precisam repensar seu papel e representatividade.

Medidas consideradas politicamente incorretas e não populares precisam ser tomadas sem perda de tempo:

  • Jornadas de trabalho cumpridas (i.e., cobradas) de acordo com os contratos de trabalho
  • Revisão das políticas de acesso (vestibular, cotas, ingresso na pós-graduação, atração de pós-doutorandos e pesquisadores visitantes, nacionais e estrangeiros)
  • Segurança patrimonial e pessoal no campus
  • Transformação do HU em um hospital de pesquisa e desenvolvimento moderno.

Parte de um plano desta natureza só pode ser executada se o dirigente não tiver que pensar em eleição/reeleição. É por isso que também é muito importante que se repense o sistema atual de escolha de reitor, diretores de centro e chefes de departamento. A quem interessa o sistema atual? Se o objetivo é o desenvolvimento da universidade, penso que nem à situação, nem à oposição interessa o atual modelo. Afinal, ele deu no que deu. Um desastre! O Conselho Universitário, seu papel, seu tamanho, seu processo de escolha, precisa ser repensado! A UFSC e a universidade brasileira em geral não podem mais se dar ao luxo de ter administrações comprometidas com grupos e dar as costas ao desenvolvimento nacional. Em outros estados vimos o crescimento do sistema federal de ensino com a criação de novas universidades. E Santa Catarina, por que não tem outras universidades federais? Será que temos medo da concorrência? A estupidez e o interesse pessoal precisam ceder lugar à inteligência e ao bom senso. O Brasil nos paga para termos uma instituição decente. Não estaremos fazendo nenhum favor.