segunda-feira, janeiro 02, 2012

Ao vivo é melhor!?

No meio daquela multidão, alguns se espremiam para sair, outros para entrar. O cenário: a sertaneja Paula Fernandes na festa de Réveillon 2012 na Beira-Mar Norte, em Florianópolis, debaixo de chuva, e (nós) em cima de poças de água e de lama. 

Tinha acabado de assistir ao DVD Paula Fernandes - Ao Vivo, confortavelmente instalado em frente a uma TV LED de 60" com nitidez de imagem suficiente para ver os cílios da menina-boneca, embalados por um som surrounding 5.1. Mas parece que não tem nada que substitua a imagem direta, a visão ocular sem obstáculos, reflexão ou projeção. Fiquei me perguntando: o que é que faz alguém como eu (e mail 200 mil pessoas, de acordo com as estimativas da Polícia Militar) sair do sequinho e quentinho de seu lar para ver sob chuva e bafo menos do que tem ali tão perto e disponível? Não é pela música, porque essa dava para ouvir de casa; não é pelo cheiro (dela) ou pelo tato, porque esses ficaram bem longe. Era simplesmente pela visão direta, mesmo que embaçada pela chuva e pela nuvem de gás carbônico criada no palco pela competente produção da cantora/compositora. Foi com esse cenário e nessas circunstâncias que me dei conta do quanto o virtual e o real podem ter valores tão diferentes, dependendo das circunstâncias, e o quanto o real pode ser confundido com presencial.

Tenho me interessado pelo tema real versus virtual já há algum tempo, e tenho analisado experiências que podem mostrar a diferença entre o que é cultural e o que é biológico, intrínseco, "natural" (Não concordo com Pierre Lévy - O que é o Virtual, Editora 34, que defende que o virtual só existe como potência e não deve ser contraposto ao real). Em geral tenho defendido que experiências virtuais podem ser tão ou mais satisfatórias do que as reais, dependendo de quanto a sua mente é capaz de simular a condição tida como real ou presencial. E isso implica um certo grau de imersão, liberdade e abstração, imaginação. Um jogo de xadrez contra um computador pode ser um bom exemplo. A satisfação de superar o adversário "virtual", neste caso um programa de computador, pode ser mais gratificante do que ganhar uma partida contra um jogador de carne e osso. A virtualização do jogo, neste caso, não é só potencial; ele, o jogo, é real! Na questão de um evento virtualizado, portanto, a relação espaço-temporal parece pender mais para o espacial em alguns casos, e mais para o temporal, em outros. E, portanto, nem sempre real deve ser sinônimo de presencial, no sentido espacial e temporal. Falar com alguém no Skype ou no Facetime é uma experiência bem real, embora possa estar mal sincronizada e com personagens em lados opostos do planeta.

Entendo que o sentido do que parece real no senso comum está em presenciar algo com os nossos órgãos sensoriais e está ligado à interação de diferentes sinais que ativam ou estimulam nossos receptores químicos, térmicos, de luz e/ou mecânicos, e à expectativa que temos das experiências sensoriais do passado, nossas e de nossos ancestrais ("memórias" genéticas biologicamente a nós transferidas). Pois que os sinais de luz que nos atingem, como os que podem ter vindo refletidos da Paula Fernandes, são somente ondas eletromagnéticas que não dão a mínima para o caminho direto ou indireto que precisam seguir antes de chegar aos nossos olhos. Todavia, era este caminho direto que estava sendo buscado por todos que estavam presentes ao espetáculo do Réveillon, mesmo que a imagem no telão ao lado fosse mais nítida e próxima.

Obviamente que não estão nos olhos os prazeres ou desprazeres que sentimos; e também não estão no tato ou audição. Eles estão em nosso cérebro, e na forma como nossa mente constrói emoções e registra e resgata memóriasNo caso do show ao vivo, há ainda o sentimento do coletivo, da ligação quase transcendental entre o ídolo e o fã, ou entre os próprios fãs, algo que precisamos compreender melhor para entendermos como alguém quase completamente desconhecido se transforma num grande sucesso de uma hora para outra, e vira mito no momento seguinte. Fala sério: quem conhecia Paula Fernandes antes de sua participação no show de final de ano do Roberto Carlos na Globo, no Natal de 2010, há um ano atrás? E o que dizer do mito Roberto Carlos por si só? 

Estamos falando da construção de experiências e de memórias que combinam ingredientes biológicos (percepções sensoriais, laços emocionais, ...) e culturais (percepções culturais, laços coletivos, ...) capazes de transformar a realidade como a percebemos e de agregar valor através das conexões com a realidade já vivida, nossas memórias, ou o que está por vir (nossas expectativas com relação ao futuro). Esse é um fenômeno que separa agentes de expectadores, atores de platéia, ídolos de fãs. No fundo, estamos tratando dos mesmos mecanismos que fazem o Ronaldinho Gaúcho ou o Neymar (do Santos) ficarem 'lindos', mesmo com dentes ou cabelos horrorosos, ou ainda o Tancredo Neves, que pouco fez em vida, comover o país e virar herói nacional post mortem.

Eu até entendo o reconhecimento por valores intrínsecos, pelo talento inato, do que é fruto a admiração que sentimos por Pelé ou Ayrton Senna, por exemplo, unanimidades nacionais. Mas, convenhamos, tem muito de artificial, virtual, nisso tudo! Com um milésimo da grana do Eike Batista, até eu fico bonitinho de uma hora para a outra. Portanto, onde está o valor intrínseco? Ou ele não é o que interessa apenas? Que tipo de realidade nos traz bem-estar? Posso ter satisfação só com o virtual? Como conectamos nossas expectativas com nossa história? Como se dá a ligação do presente com o passado e o futuro? Como criamos nossas percepções? Como valorizamos nossas memórias?

Esses assuntos são fascinantes e complexos, objetos das Neurociências, e que afetam nossa cultura e têm implicações importantes na economia, na formação de políticas públicas, na formação de recursos humanos, na educação de nossos filhos, no bem-estar individual e social em geral. Devemos refletir e discutir um pouco mais sobre eles, se queremos entender o que nos traz prazer e nos faz feliz. Isso é o que pode nos tornar seres humanos 3 vezes sapiens.

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